Por Paulo Rosa Sociedade Científica Sigmund Freud

Beckett e Cioran: amigos, mas...

Samuel Beckett, irlandês, e Emil Cioran, romeno, viveram exilados em Paris desde 1937. Aí chegaram muito jovens, 31 e 26 anos, respectivamente, e sua aproximação e amizade estreitou-se a partir do interesse compartilhado pelo estudo e a busca ativa da vivência concreta do fracasso. Tinham outros pontos em comum, como terem escrito a maioria de suas obras em francês e serem tipos, digamos, raros para o convívio, mas o ponto de convergência maior foi sempre o atroo, o revés.

Beckett, 1906-1989, prosador e dramaturgo, em seu escrito Worstward Ho, p.7-8, diz a frase lapidar: "Tentaste. Fracassaste. Não importa. Tenta novamente. Fracassa outra vez. Fracassa melhor". Foi também ele que numa carta de 21 de abril de 1969, dirigida a Cioran, revela que encontra refúgio, sente-se acolhido, "em casa", em suas leituras sobre as humanas ruínas escritas pelo filósofo romeno. Este, em contrapartida, em carta de 26 de abril de 1970, contida nos seus Cahiers, revela-se chocado com as afinidades existentes entre a visão de mundo (weltanschauung) de seu amigo Samuel e a sua própria, "fundamentalmente a mesma impossibilidade de ser".

Uma das características incomuns de Beckett era de que ele não reagia a elogios e tampouco a críticas feitas a seus trabalhos escritos ou de teatro. Ficava impassível e seguia adiante, "tentando novamente". Essa poderá ser, para mortais comuns como nós, uma dimensão a ser levada em conta, seja para tempos de bonança ou de tempestade. Procurar não se abalar, viva-se em qualquer dos dois extremos. Não sei o exato pensamento do irlandês neste ponto, mas talvez o animasse a ideia de que tudo passa, de que a vida não para. Portanto, aguarde-se e deixe-se andar.

Emil Cioran, 1911-1995, definiu-se como um "arquiteto de ruínas", e que se tivesse vivido em outros tempos, revela, construiria um "templo às ruínas". Descreveu sua proverbial insônia como "uma tragédia de muitos anos". Em paralelo, privilegiava nos textos questões sobre suicídio e morte, condensando seu pensamento ao modificar o tradicional cogito cartesiano - "penso, logo existo" - para, "sofro, logo sou".

Ambos expoentes intelectuais mantiveram muitos amigáveis contatos em Paris, ao longo dos anos. Entretanto, mais próximos ao final, não conseguiram concretizar um último encontro, revelam os biógrafos. Por esta época começou a circular no ambiente alguns aspectos pouco animadores da juventude de Cioran, onde se revelava um apoiador do fascismo desmiolado de Hitler, qualificado pelo romeno como um "delírio de juventude".

Não fica claro o porque os dois amigos tão afins, tão próximos, não puderam realizar um almejado novo contato, quando ambos já velhos. Mas não dá para não pensar que Beckett, atinado como era, não tenha se apercebido das ideias circulantes sobre o passado namoro nazi de Cioran.

Faz pensar a cética máxima piratiniense: a mais conhecimento, mais decepção.


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